TENDÊNCIAS ATUAIS DO MISTICISMO

Prof. Dr. Lino Rampazzo


- Introdução

- A modernidade: um novo tipo de humanidade, consciente da própria autonomia e de sua força racional (séc. 16). Esta autonomia recebe novo impulso pela civilização industrial, pelo desenvolvimento técnico-científico (séc. 18). A fé vai ser empurrada e a sociedade se secolariza.

- A pós-modernidade: nasce da decepção frente à ciência e à técnica, que destruem a natureza (problema ecológico), desgastam os relacionamentos humanos, não conseguem resolver problemas básicos (fome), aumentam a distância entre ricos e pobres, criam armas sempre mais sofisticadas, etc. A pós-modernidade não acredita num progresso necessário e infinito.

- A volta do sagrado: O homem volta-se para seu "interior" e se questiona. Interesse "esotérico": diferença entre "exoterismo" (= a exterioridade) e "esoterismo" (= a interioridade).

O homem está confuso não pela negação da religião, mas pela "super-oferta" religiosa. A "revanche do Sagrado" assume a forma de movimento psico-místico-paracientífico-espiritual-terapêutico. Na volta do sagrado procura-se sanar as feridas da sociedade moderna. A nova mística abrange pobres e ricos.

- Holística: a tentativa de compreender a realidade de modo integral.

- Mística: O termo nasce dentro de um contexto extremamente religioso, ligado aos mistérios, particularmente os ritos de iniciação.

- mística oriental: a partir do esforço do homem para atingir o divino;

- mística bíblico-cristã: a partir da iniciativa gratuita de Deus.

Para a Escola de Alexandria (Orígenes), o termo "mística" possui um tríplice significado: cultual, kerygmático (= de anúncio) e teológico.

Na época moderna, a mística assume características bem próprias em oposição à ascética.

Aspecto antropológico: em cada pessoa existe uma dimensão profunda. Aliás, toda realidade é também mistério: pessoas, cosmos, história, natureza, etc.
-2-


- Misticismo: as realidades humanas, sobretudo as espirituais, correm risco de desvios. E o atual movimento místico mistura muita fuga, reducionismos, compensações psicológicas, com autênticos anseios de transcendência.

"Mística" é, pois, um aspecto necessário e saudável da experiência humana; e "misticismo" são os "desvios" da experiência mística. Cf. o "sim-bólico" (o que une) e o "dia-bólico" (o que divide).



- Três tipos de mística:

- mística cósmica: encaminha-se na linha da redescoberta simbólica do cosmos como divino, unitário, holístico; aproxima-se do panteísmo, se é que não o assume de verdade.

- mística psicológica: procura desenvolver as potencialidades humanas até atingir o próprio divino.

- mística dialógica (judaico-cristã): é o encontro com Deus, o transcendente, que na sua absoluta alteridade e gratuitade atrai a si a pessoa para uma experiência profunda de amor.

Conclusão: "Examinai tudo e ficai com o que é bom" (1 Ts 5,21).

- A "revanche do sagrado" é sinal de que o homem não pode viver sem a espiritualidade.

- O diálogo inter-religioso não significa nem confusão, nem fechamento no próprio mundo. <br>

- "Holismo": o termo, etimologicamente, aponta para a procura da "totalidade", a superação da fragmentação.

As muitas experiências do misticismo podem ser também uma crítica a um tipo de experiência cristã freqüentemente ritualista, pouco humana, insensível ao homem de hoje.



BIBLIOGRAFIA

BOFF, Leonardo.Saber cuidar : ética do humano - compaixão pela terra. Petrópolis : Vozes, 1999.

___________. O despertar da águia : o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. Petrópolis : Vozes, 1998.

___________. Ecologia, mundialização e espiritualidade : a emergência de um novo paradigma. São Paulo Ática, 1993.

DAMAS, Luiz Antônio Hunold de Oliveira. O desafio de educar na pós- modernidade : rediscutindo o Sistema Preventivo. Revista de Ciências da Educação. ano 01, n. 01, p. 17-42, 1999.

DESROCHE, Henri. Sociologia da esperança. Tradução de Jean Briant. São Paulo : Paulinas, 1985.

GARCIA Rubio, Alfonso. O ser humano à luz da fé cristã e a racionalidade moderna, Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, n. 56, p. 31-53, jan./abr. 1990.

GASTALDI, Ítalo. Educar e evangelizar na pós-modernidade. São Paulo : Salesiana Dom Bosco, 1994.

GODIN, André. Psicologia delle esperienze religiose : il desiderio e la realtà. Brescia : Queriniana, 1983.

HENRI, Desroche. Sociologia da esperança. São Paulo : Paulinas, 1985. <br>

LELOUP, Jean-Yves et al. O Espírito na saúde. Tradução de Pierre Weil, Regina Fittipaldi. Petrópolis : Vozes, 1997.

LIBÂNIO, João Batista. Mística e missão do professor. 3. ed. Petrópolis : Vozes, 1998.

LORSCHEIDER, Aloísio. A religiosidade no limiar do 3º milênio. Fragmentos de Cultura, Goiânia, n. 17, ano 6, p. 7-15, maio 1996.

MAÇANEIRO, Marcial. Esoterismo e fé cristã : encontros e desencontros. Petrópolis : Vozes, 1997.

__________. Mística e erótica : um ensaio sobre Deus, Eros e Beleza. 2. ed. Petrópolis, Vozes, 1996.

MIRANDA, Mário de França. O pluralismo religioso como desafio e chance. REB, Petrópolis, 218, p. 323-337, jun. 1995.

MOREIRA, Alberto, ZICMAN, Renée (orgs.). Misticismo e novas religiões. Petrópolis : Vozes, 1994.

NEGRÃO, Lísias et al. A religiosidade do povo. São Paulo : Paulinas, 1984. <br>

NERY, Israel José. Ano 2000 e Terceiro Milênio. Integração, Porto Alegre, ano XXVI, n. 72, p. 108-122, jun./jul. 1997.

ORO, Pedro Ari. Modernas formas de crer. REB, Petrópolis, 225, p. 39-56, mar. 1997. <br>

___________. O "expansionismo" religioso brasileiro para os países do Prata. REB, Petrópolis, 216, p.875-895, dez. 1994.

ORO, Ivo Pedro. O outro é o demônio : uma análise sociológica do fundamentalismo. São Paulo : Paulus, 1996.

PINHO, Arnaldo de. Cultura da modernidade e Nova Evangelização. Porto : Perpétuo Socorro, 1990.

QUEIROZ, José J. et al. As interfaces do sagrado. São Paulo : Olho d’Água, 1996.

SCARLATELLI, Cleide Cristina da Silva. A camuflagem do sagrado. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 82, p. 419-430, jul./set. 1998.

SUSIN, Luiz Carlos. O Espírito e a Nova Era. REB, Petrópolis, 222, p. 308- 330, jun. 1996.

TEASDALE, Wayne. Uma reflexão teológica. Concilium, Petrópolis, 280, p. 109-114, 1999/2.
_______________. No limiar da era interespiritual. Grande Sinal, Petrópolis, ano LI, 6, p. 713-726, nov./dez. 1997.

UNGER, Nancy Mangabeira (org.). Fundamentos filosóficos do pensamento ecológico. São Paulo : Loyola, 1992.

VERDONE, Luciano. Fuga dall’Occidente. L’Araldo Abruzzese, Teramo (Italia), ano XCV, n. 3, p. 1-2, 31 jan. 1999.
WINCKEL, Erna van de . Do inconsciente a Deus : ascese cristã e psicologia de C.G. Jung. Tradução de Benôni Lemos. São Paulo : Paulinas, 1985.

WULF, F. Mística. In: DICIONÁRIO DE TEOLOGIA. v. 3. São Paulo : Loyola, 1970. p. 322-335.

XAUSA, Izar Aparecida de Moraes. A psicologia do sentido da vida. Petrópolis : Vozes, 1986.


TENDÊNCIAS ATUAIS DO MISTICISMO


O termo "mística" entrou na onda da era pós-moderna. Que acontece? Antes estava perdido nos dicionários de teologia, nas obras de espiritualidade, no recinto dos monges e monjas contemplativos. Hoje passeia pelas praças públicas. Será que estamos vivendo os tempos do Concílio de Nicéia quando se discutia nos banhos se o Filho era da mesma natureza que o Pai ou simplesmente semelhante? Em grego se trata de acrescentar ou retirar um "i" ("omoousios"= da mesma natureza; "homoiousios"= semelhante).

Programas de TV, artigos de jornais e de revistas de divulgação, livros e revistas científicas analisam as diferentes manifestações deste novo interesse do homem de hoje pelo "sagrado", pela "mística". No esquema que apresentei para vocês, indiquei um pouco de bibliografia, a respeito.

O curso de filosofia é lugar privilegiado onde se questiona, de maneira racional e sistemática, o "por que" de todas as coisas. Os responsáveis do CEFIL perceberam, pois, a oportunidade de refletir sobre este fenômeno e escolheram, para a aula inaugural do 2º semestre, o tema "tendências do misticismo no final do milênio".

Não tenho nenhuma pretensão de esgotar um assunto tão vasto, que necessita de uma análise muito profunda e bem mais demorada do que o permitido numa simples aula inaugural. Procuro apenas indicar alguns elementos que possam nos ajudar a entender o que está acontecendo ao nosso redor.

Vamos desenvolver os seguintes itens:

- o que é a modernidade;

- o que é a pós-modernidade;

- a volta do sagrado;

- mística e misticismo;
- os principais tipos de mística na &eacute;poca atual.



A modernidade


A modernidade é um processo que tem sua origem no século 16, quando começa a emergir um novo tipo de humanidade consciente de sua própria autonomia e de sua própria força racional. No momento em que Descartes cunha o famoso axioma "Cogito, ergo sum", a razão começa a celebrar o seu triunfo, empurrando a fé (no caso, a fé cristã!) sempre mais para a periferia.

-2-

Esta autonomia do ser humano recebe novo impulso a partir do século 18 pela civilização industrial ou do desenvolvimento técnico-científico.

Este movimento da modernidade ou modernização desemboca na sociedade que denominamos "secularizada". O eixo da civilização deixou de ser a religião, como foi no passado, e se deslocou para a economia (produção e trabalho) e a política. A religião passou para o domínio privado. Para a sociedade moderna, a religião não conta. As esferas da vida humana tornam-se sempre mais autônomas. O que conta na vida do ser humano é este mundo, é a imanência. A transcendência nada mais diz ao homem da modernidade. É o fenômeno do "secularismo".

A pós-modernidade

Hoje, porém, a modernidade entrou em crise. Por isso, fala-se de pós-modernidade. Essa tendência caracteriza-se pela decepção frente à ciência e à técnica.

Esta decepção tem a sua razão de ser ao considerar a situação cada vez pior do meio ambiente, considerando as guerras que prosseguem, as experiências atômicas que continuam, as injustiças e distâncias crescentes entre ricos e pobres, o fracasso de muitas previsões otimistas...A pós-modernidade não acredita num progresso necessário e infinito. Se todos atingissem o mesmo nível elevado de bem-estar material de que desfrutam os países do primeiro mundo (e as classes altas e médio-altas do terceiro mundo), as condições humanas de vida seriam inviáveis. Tanto os países capitalistas, quanto os socialistas de corte marxista, basicamente tinham o mesmo ideal: resolver os problemas da humanidade pelo "ter mais" e não pelo "ser mais". Este ideal mostrou-se e mostra-se irrealizável. Em vez do progresso sonhado, houve regresso: concentração de riquezas nas mãos de poucos; aumento acelerado da pobreza. É precisamente a consciência ecológica e o problema da vida no mundo que torna questionável a viabilidade do projeto da modernidade, do projeto do progressivo domínio da natureza mediante sua despótica observação. A ciência, assim, está perdendo seu valor como fonte de sentido e deixa, com a técnica, de ser considerada cada vez mais como princípio válido de orientação cultural. Esta crise das forças de configuração dos tempos modernos tem necessariamente seus efeitos sobre o que há de mais íntimo no homem do Ocidente e coloca em xeque seu pensar, seu agir e seu sentir. Nasce uma crescente insegurança quanto ao futuro. Levantam-se perguntas angustiantes: Como se pode ter hoje uma identidade? Quem somos? Que devemos ou queremos ser? A resposta é cada vez mais difícil no mundo cheio de problemas.


A volta do sagrado

Nesta profunda crise, há uma espécie de retorno a tradições pré-modernas, em particular pré-iluministas, em que se buscam certezas mais fortes do que possa oferecer a modernidade crítica. Elas querem ser uma resposta salvadora a um presente vivido como crise. Na atual situação cultural, fortalecem-se as correntes esotérico-religiosas, que há anos fazem parte dos fenômenos vitais de grande interesse, como a religiosidade e a espiritualidade.

Vamos, a esta altura, apresentar mais uma conceituação: exoterismo e esoterismo. Estas palavras são costumeiramente usadas para expressar dois aspectos básicos de todas as realidades humanas: a exterioridade e a interioridade. De fato, não só as religiões, mas as artes, as experiências de maravilhamento e paixão, nossa psique e nossos sonhos, e tudo o mais que seja humano, é marcado por um componente visível, claro, compreensível, e outro obscuro, enigmático, muitas vezes indecifrável. Foi assim que os antigos gregos criaram estes dois termos: exotérico com ": x", para significar a face exterior dessas realidades; e esotérico, com "s", indicando a face interior de nosso ser, nossas produções, crenças e afetos. Por isso, apesar do uso generalizado de "esoterismo" como culto de verdades secretas, o ocultismo, a magia etc., há quem utilize essa palavra para indicar o aspecto enigmático e escondido de outras áreas da vida humana: o sentido misterioso de um poema, de um gesto, de um sonho, de um desenho etc. No caso das religiões, a dimensão interior é a experiência mística, fundante, desafiadora, de onde se originam as convicções profundas de uma crença, seus símbolos principais e sua espiritualidade. De outro lado, está a vivência cotidiana da religião, a parte exterior: as normas práticas, a ética do grupo, os ritos, etc. <br>

Voltamos ao nosso raciocínio. Há, hoje, um retorno ao sagrado. O ser humano está confuso e desorientado não pela negação ou pelo fim da religião (como queriam os "mestres da suspeita" - Marx, Nietsche, Freud), mas pela superoferta...das Igrejas, seitas e orientações religiosas.

-4-

Contestou-se a mediação religiosa das instituições tradicionais. Na atual sociedade pluralista as instituições não mais conseguem ter o controle de suas doutrinas, símbolos, ritos e práticas, ou mesmo de seus adeptos, que, por vezes, só em parte aceitam o discurso oficial, vivem uma dupla pertença religiosa. As pessoas atiraram-se com avidez sobre as correntes esotéricas, a magia, a astrologia, as técnicas de meditação e aperfeiçoamento psíquico e caíram nas mãos de gurus e mestres formados nas mais estranhas teosofias orientais.

A "revanche do Sagrado" assume a forma de movimento psico-místico-paracientífico-espiritual-terapêutico. Essa fila de adjetivos pretende resumir a complexidade e a ambigüidade de tal surto religioso. Relaciona-se profundamente com a situação psicológica desse homem e mulher pós-modernos. Estes aspiram a um campo místico, que ultrapasse o mundo científico fechado, que entre pelo espiritual e lhes seja uma verdadeira cura interior.
O sagrado vem sanar, em nível individual, as carências, necessidades e feridas que a sociedade altamente tecnificada tem produzido: o horror de duas guerras mundiais neste século, os artefatos bélicos atômicos capazes de destruir várias vezes toda a vida no planeta, a péssima distribuição da renda a nível mundial, com a espantosa diferença entre o assim chamado "primeiro mundo" e o "terceiro mundo". E hoje, seja no "primeiro", como no "terceiro" mundo, a "globalização da economia" traz consigo o espectro do desemprego. Já não se pode confiar na razão instrumental, técnica, científica, pois ela continua devastando a natureza, destruindo a cada dia inúmeras espécies de vida, poluindo as águas, os ares, o solo e o subsolo, desgastando os relacionamentos humanos. Enfim, impõem-se o medo, a angústia, a falta de sentido, subprodutos do desenvolvimento. Entregue à frieza da técnica, à carência de sentido, o homem reage buscando o oposto: a harmonia, a emoção, a intuição, a razão fruitiva e comunicativa. Rasga-se então enorme espaço para o surto religioso de todo tipo: esoterismos, promessas de curas, práticas de ocultismo mágico, passagens pelo fogo, saunas hindus, a fé na virada do tempo para uma Nova Era do homem aquariano.

A onda mística destes últimos anos reflete forte dose compensatória da carência existencial. O olhar desvia-se do sagrado como valor absoluto em si e, por isso, normativo, para concentrar-se no indivíduo necessitante de conforto. O sagrado vem consolar, resolver os problema imediatos.



-5-

O sofrimento e os problemas atingem as áreas materiais e espirituais. Os pobres vêem-se assolados por terríveis ameaças à vida material pela fome, pobreza, falta dos bens elementares, além de terem a alma atribulada. Necessitam do sagrado para os dois mundos.

Os ricos, bem defendidos no campo material, não escapam de se tornarem vítimas do enjôo existencial. Também precisam bater à porta do sagrado. Daí que essa onda não discrimina classes. <br>

A esse respeito, uma recente pesquisa do Santuário Nacional de Aparecida revela que: <br>

- há uma significativa presença da classe médio-alta entre os romeiros; <br>

- menos de um terço dos romeiros comunga; e um número ainda bem menor se confessa (250 mil confissões anuais por mais de 7 milhões de romeiros). <br><br>

Talvez estes dados mostrem que o objetivo imediato da romaria não é a conversão radical a Cristo e à sua Igreja, mas a necessidade de um consolo espiritual-individual.

Vamos para mais uma conceituação, que é importante para entender o fenômeno atual do misticismo. Um termo hoje muito usado é "holística". Do grego "hólon" (= totalidade, globalidade). Trata-se da tentativa de compreender a realidade de modo integral.

Com o pensamento moderno e autonomia da razão, o conhecimento humano foi-se especializando cada vez mais. As ciências se organizaram como um conjunto de especialidades bem definidas, com instrumental técnico e métodos rigorosos de investigação. Todo cientista competente é um especialista: alguém que sabe tudo sobre um pequeno fragmento. A alta especialização trouxe-nos grande conhecimento e poder de instrumentalização da natureza. Mas provocou uma fragmentação na visão de mundo e humanidade.

Além disso, no substrato de nossa cultura ocidental encontramos outras divisões: entre corpo e alma, terra e céu, vida espiritual e vida prática, razão e emoção, discurso e símbolo.

Seria ingenuidade negar essas "dualidades". elas constituem as tramas da nossa existência. Contudo, é um equivoco encará-las como divisões estanques. Dualidade não significa dualismo radical ou oposição. Hoje existem reações a esses dualismos, em prol de uma visão mais integral e unitária do ser humano, da vida e do cosmos. Aí entra a "holística". As ciências já formulam os inícios de uma antropologia holística, uma medicina holística., uma psicologia

-6-

holística, etc. O pensamento holístico está na fase de ensaio: é uma tarefa ainda embrionária, mas que certamente crescerá. De qualquer forma, o ser humano, hoje, vem sendo estimulado a superar as dicotomias que o limitam. Invade-lhe o desejo de ultrapassar as fronteiras da física e da ciência, do corpo, do mundo cósmico, do aqui, do saber cartesiano para paragens místicas, espirituais. Reina o mundo do "para" (= ao lado de): parapsicológico, paranormal, paracientífico. De novo, está aberto o espaço para a onda mística com toda sua ambigüidade e complexidade.

Mística e Misticismo


Até agora falamos da modernidade, da pós-modernidade, da revanche do Sagrado e da "onde mística". Mas o que significam as palavras "mística" e "misticismo"?

A palavra "mística" possui longa história no cristianismo e fora dele. A etimologia faz derivar o termo do adjetivo grego "misticós", relacionado com os verbos "muo" (fechar os olhos e a boca para penetrar num mistério sem divulgá-lo) e "mueo" (iniciar-se nos mistérios"): iniciar, instruir alguém nos mistérios; e mais comumente na voz passiva: ser iniciado, instruído nos mistérios. Portanto, mística nasce de um contexto extremamente religioso, ligado aos mistérios, particularmente os ritos de iniciação. A pessoa é levada a experimentar, através de celebrações, cânticos, danças, dramatizações e realização de gestos rituais, uma revelação ou uma iluminação conservada por um grupo determinado e fechado. Importa enfatizar o fato de que "mistério" está ligado a essa vivência/experiência globalizante.

Não se trata de ouvir uma catequese sobre uma doutrina de difícil acesso ou de receber lições sobre certa visão secreta das coisas. mas se trata de fazer uma experiência religiosa comunitária. A esse processo experimental chamou-se mistério, para dizer que é comunicado a um grupo que se dispõe a isso e não simplesmente a qualquer assistente curioso.

Conserva, portanto, o significado principal de exprimir toda experiência mais íntima de uma realidade transcendente, sobretudo religiosa. Ampliou-se-lhe também o sentido para a vivência de uma causa, de uma vocação, de um ideologia: quando se é tomado, absorvido por ela.

No campo religioso, há um divisor de águas muito importante. Na tradição das religiões orientais, mística associa-se mais a uma comunhão com o mundo divino a que o ser humano aspira através de esforço, exercícios,

-7-

técnicas. Nesse sentido, o mestre, o guru afigura-se fundamental para introduzir o noviço nesse mundo dos mistérios do divino.

Na tradição bíblico-cristã, mística entende-se antes a partir da iniciativa gratuita de Deus de atrair para si a criatura, que, num segundo momento, se deixa arrastar pelo ímpeto divino com sua aceitação. Jeremias traduz graficamente tal experiência comparando-a com a sedução: "Seduziste-me, e deixei-me seduzir, agarraste-me e me submeteste!" (Jr 20,7).

A influência da Escola de Alexandria (Orígenes) imprimiu ao termo um tríplice significado: cultual, kerygmático (= de anúncio) e teológico. "Místicos" são chamados os objetos de culto (p ex. o cálice) e os ritos litúrgicos, enquanto simbolizam um mistério divino, o mistério de Cristo e da redenção. É bom lembrar, a esse respeito, que a palavra "sacramento" é a tradução do termo latino "sacramentum", que, por sua vez, traduz o termo grego "mysterion".

Quanto ao significado kerigmático, "místico" é o sentido íntimo, espiritual da Sagrada Escritura. Mas "mística" é, sobretudo, a misteriosa e real comunhão do cristão com Cristo (o Logos, donde "mística do Logos"), que se fundamenta no batismo; comunhão que se experimenta na fé (gnose) e no amor. "Mística" no sentido teológico é, portanto, a gnose carismática, plena de amor, do perfeito homem espiritual. <br>

Na sistematização da teologia, já na época moderna, a mística assume características bem próprias em oposição à ascética. Essa ruptura artificial e didática contaminou a semântica da palavra. Fê-la transitar por caminhos cada vez mais extraordinários, fazendo-a um "horto fechado", inacessível ao comum dos mortais e exclusivo de pessoas eleitas , dotadas de dons extraordinários de visões, aparições, estigmas, revelações. <br>



A mística é dom de Deus, mas encontra no ser humano pontos de engate, criados pelo próprio Deus. Revela que em cada pessoa existe uma dimensão profunda.

O ser humano é mistério também para si. Mistério enquanto realidade absolutamente inatingível em sua totalidade. Limite para a própria inteligência. Durante toda a vida estamos juntos a nós mesmos e nos surpreendemos. Não dá conta dessa realidade o simples recurso ao inconsciente. O mistério vai mais longe. Em termos antropológicos implica, da parte das pessoas, desejo irreprimível de imergirem-se no seu interior à busca da sua própria realidade. Lá depara-se com um núcleo que irradia para todos os lados. Para trás, captando o histórico-existencial. Para o lado, tecendo relações novas e criativas

-8-

com as pessoas e com o cosmos. Para cima, suspirando por encontros maiores com o transcendente. Para frente, lançando-se em projetos novos e prenhes de esperança. Para baixo, descobrindo as camadas mais profundas do eu.

Nesse sentido, entendem-se as pretensões da psicologia de profundidade, transpessoal, que não se contenta com o espaço atual já possuído pelo nosso Eu consciente, mas quer avançar sempre mais em todas as direções, alargando a consciência.

A mística permite que se perceba, para além do mistério que cada um é para si, o dado de que toda realidade é também mistério: pessoas, cosmos, história, natureza, etc.

Educa novo tipo de olhar. Deixa-se de lado a visão reducionista das ciências, sobretudo empíricas, experimentais e objetivantes para alargá-la para o olhar intuitivo, espiritual, contemplativo, admirador. <br>

Esta dimensão antropológico-existencial revela uma face religiosa implícita. Mistério, como a etimologia nos ensina, situa-se no campo religioso por excelência. Mistério reflete a inabitação do divino em todas as coisas. É a presença da transcendência na imanência. De parte nossa, supõe nova sensibilidade.

&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;Mas as realidades humanas, sobretudo as espirituais, correm risco de desvios. L. Feuerbach, se na sua crítica radical exagerou, ao identificar a realidade de Deus com projeções da subjetividade humana, acertou em alertar-nos para a periculosidade do espaço religioso. Se Marx simplificou o fenômeno religioso em seu alcance social, ao reduzi-lo a "ópio do povo", apontou, sem dúvida, para desvios muito reais. Se Freud confinou Deus aos limites de nossa infantilidade, tocou em chagas vivas de muitos fiéis.

Com efeito, o atual movimento místico mistura muita fuga, reducionismos, compensações psicológicas, com autênticos anseios de transcendência. Há, ao mesmo tempo, tanto uma capitulação ao reino do mercado consumista da fé quanto uma crítica teologal ao império absoluto da técnica.

Essa ambigüidade acentua-se cada vez mais sobretudo por obra e graça da mídia. Esta consegue transformar em mercadoria as realidades mais sagradas. Apodera-se de qualquer realidade religiosa e fá-la objeto de consumo, arrancando-lhe o valor intrínseco, objetivo, transcendente, normativo.



-9-

Poderíamos dizer, a essa altura, que "mística" é um aspecto necessário e saudável da experiência humana; e "misticismo" são os "desvios" da experiência mística, que podem, por exemplo, absolutizar um elemento da sua experiência religiosa. A "mística" integra, envolve a pessoa como um todo; enquanto que o "misticismo" desintegra a pessoa; é um exagero, um desequilíbrio do caminho rumo à experiência mística.

Neste sentido, é interessante a reflexão que encontramos no recente livro de Leonardo Boff "O Despertar da águia : o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade". Permito-me aplicar o seu raciocínio à distinção entre "mística"e "misticismo".

"Sím-bolo/sim-bólico provém de symbállein. Literalmente significa : lançar (bállein) junto (syn). O sentido é: lançar as coisas de tal forma que elas permaneçam juntas. Num processo complexo significa re-unir as realidades, congregá-las a partir de diferentes pontos e fazer convergir forças num único feixe.

Originalmente existia por detrás da palavra e do conceito símbolo uma experiência singular e curiosa: dois amigos, por conjunturas aleatórias da vida, têm que separar-se. A separação é sempre dolorosa. Implica sentimento de perda. Deixa muita saudade para trás. Assim os dois amigos tomavam um pedaço de telha e cuidadosamente o partiam em dois, de tal modo que, juntados, se encaixavam perfeitamente. Cada um carregava consigo o seu pedaço. Se um dia voltassem a encontrar-se, mostrariam os pedaços que deveriam encaixar-se exatamente. Caso se encaixassem, simbolizava que a amizade não se desgastou nem se perdeu. Era o símbolo (eis a palavra), vale dizer, o sinal de que, apesar da distância, cada um sempre conservou a memória bem-aventurada do outro, presente no caco bem cuidado da telha.

Deste significado originário de sím-bolo, derivou-se naturalmente o outro: sím-bolo como sinal de distinção. Cada país, cada cidade, e hoje cada produto, têm sua marca registrada, seu logotipo e símbolo. Até na religião penetrou essa significação. Para a teologia cristã, por exemplo, cunhou-se a expressão técnica símbolo da fé para expressar o credo e os dogmas fundamentais. Eles são os sinais de distinção, a marca registrada da fé cristã, diferente de outras formas de fé.

E o dia-bólico?

Dia-bólico provém de dia-bállein. Literalmente significa : lançar as coisas para longe, de forma desagregada e sem direção; jogar fora de qualquer

-10-

jeito. Dia-bólico, como se vê, é oposto ao sim-bólico. É tudo o que desconcerta, desune, separa e opõe". (p. 11-13)

Daí, poderíamos afirmar que a "experiência mística" se realiza no "sim-bólico"; e o "misticismo" no "dia-bólico". Dia-bólico é confundir uma parte com o todo, é a absolutização de uma forma de expressão religiosa; é a redução da experiência humana só a razão, ou a sentimento, a economia, a desejo, a instinto, à imanência; e também à transcendência.

O "sim-bólico", com toda certeza, na sua totalidade, é mais um ponto de chegada do que de partida. A falta de "perfeição" presente no homem e no mundo, indica a presença do "dia-bólico"; e a procura da mesma é a tensão para o "sim-bólico".

Aplicando às mais diferentes experiências do sagrado, poderíamos afirmar que a "mística" pertence mais ao "sim-bólico" e o "misticismo" ao "dia-bólico".

É preciso, porém, reconhecer que várias vezes o termo "misticismo" não é utilizado neste sentido negativo, mas simplesmente para mostrar que está sendo ressaltado o elemento espiritual. Por exemplo, o teólogo de Chicago, Wayne Teasdale, num artigo publicado na Revista "Conclilium", citado nesta bibliografia, dá o mesmo significado ao termo "mística" e "misticismo". Assim, ele escreve: "É difícil...escrever sobre experiência mística e todo o processo interior de contato com a Realidade Divina ou Realidade Última. Ela está completamente cercada de mistério. Esta dificuldade é agravada quando tentamos falar sobre misticismo do ponto de vista teológico" (p.109). "Misticismo é o despertar para a consciência transcendental e o cultivo da mesma. É consciência unitiva. Todas as formas de sabedoria mística são unitivas, isto é, não-duais. Contribuem para compreendermos mais profundamente o mistério. Esse é um importante ponto de convergência entre as próprias religiões" (p.111). Logo em seguida, ela fala de uma "interespiritualidade" na qual são compartilhados os tesouros espirituais, estéticos, morais e psicológicos contidos nas diferentes tradições de espiritualidade das religiões mundiais" (p. 112). Mas este é já um outro tema.

No momento atual, assistimos ao surgimento de três tipos principais de mística-misticismo. Um voltado para a sacralidade do cosmos, outro, para o interior religioso das pessoas e outro aberto ao diálogo com um transcendente pessoal. Neste sentido, falamos de mística cósmica, psicológica e dialógica.
-11-

Mística cósmica

A mística cósmica encaminha-se na linha da redescoberta simbólica do cosmos como divino, unitário, holístico. Aproxima-se do panteísmo, se é que não o assume de verdade. Desenvolve uma consciência integral cósmica. Numa perspectiva monista, foge-se da angústia que vem da fragmentação e da complexidade.

Associa-se ao movimento da ecologia profunda. Esta não se contenta com simples atitude superficial de preservação do equilíbrio do planeta. Promove nova forma de consciência crítica ao uso instrumental e tecnológico da natureza. Implica conversão mental ao estabelecer relação finalística nos confrontos com a natureza em atitude mística.

No fundo, propugna-se novo paradigma: todas as formas de vida têm igual valor, supera-se a atitude antropocêntrica, desfrutadora. Toma-se consciência de que entre cada um e o cosmos existem laços profundos, correspondências secretas, afinidades vitais que devem ser restabelecidas, superando o dualismo interno (corpo e mente) e externo (cada um e natureza). O cosmos é fruto e manifestação de uma energia em contínua processão. Energia espiritual que dá origem, nas suas transformações, à matéria e ao homem. A natureza, sua suprema manifestação, é o organismo vivo, totalidade orgânica que manifesta a potência deste élan (surto) vital, com suas leis, formas, fins.

Essa vida confunde-se, em muitos casos, com o divino. No homem existe esta energia, potencial a ser ativado e realizado. Cintila esquecida. Procura-se uma nova gnose, conhecimento para descobri-la, reavivá-la. Por ela, a pessoa religa-se à energia-fundamento do cosmos. Aprofunda-se uma percepção da interligação de todas as coisas. Valorizam-se, nesta mística, símbolos, tais como mãe, natureza, terra, água, astros, cores, sons.

Assim esta mística se abre à mística psicológica.

Mística psicológica

No seu cerne está a auto-realização do Eu (A. Maslow) no mais profundo do si, em verdadeiro autocentrismo psicológico.

Reage-se tanto ao positivismo behaviorista de categorias mecânicas, newtonianas, como à psicanálise com suas concepções estáticas e absolutas,

-12-

com seu determinismo rigoroso que não capta uma personalidade sadia no seu desenvolvimento para algo de mais alto, nobre, humanamente gratificante. Para

isso, é necessário "escutar-se dentro, no próprio si, em cada momento da vida". Este desejo de ouvir-se dentro permite encontrar a filosofia e mística oriental não sem relação com pressupostos junguianos. Daí nasce novo horizonte que vai além da pessoa, em dimensão transpessoal.

&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;O crescimento psicológico se baseia sobre o crescimento espiritual onde aparecem dominantes temas ligados aos valores últimos, à consciência unitiva, à maravilha, ao significado último, à transformação de si, ao êxtase, à tomada de consciência cósmica. Transparece aí com maior clareza a dimensão religiosa mística que considera o si como o próprio divino que está em nós. É o divino em nós que deve ser posto em ato, de vir à consciência para conduzir o homem à plena realização de si mesmo.

Para tal tomada de consciência se usam técnicas variadas: zen (deseja levar o fiel ao mais alto grau de concentração através da meditação, da disciplina mental), drogas, hipnose, dança, consciência específica e momentânea do próprio corpo, hatha yoga tântrico (para entrar em sintonia com o cosmos, o que significa um êxtase na direção do Buda-Grande -Sol presente no universo), yantra (diagramas para visualização), mantra (expressões rítmicas sonoras: refrões ou sílabas, cantadas com uma cadência permanente), mudra (gestos e posições do corpo através dos quais circula a energia). Numa palavra, o desejo último é desenvolver as potencialidades humanas até atingir o próprio divino.

Mística dialógica judaico-cristã

Situa-se noutro horizonte. Antes de tudo, é iniciativa de Deus. E Deus é pessoal e, por sinal, tripessoal, e não um vago divino, uma energia primordial. Um fluido positivo cósmico.

Define-se a partir de uma realidade transcendente experimentada de maneira que supera a pura racionalidade imanente.

&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;As testemunhas qualificadas para falarem dessa experiência são os místicos. Descrevem-na como um encontro com Deus, o transcendente, que na

sua absoluta alteridade e gratuidade atrai a si a pessoa para uma experiência profunda de amor. Amor que sacia, mas que desperta ainda mais desejo. Amor de encontro, mas de busca.

Escreve S. João da Cruz, no início de seu cântico espiritual:

-13-

"Onde te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido? Como o cervo fugiste, tendo-me ferido; saí atrás de ti clamando, e já tinhas ido!"

Estes poucos versos refletem o cerne da experiência mística: Deus "fere"a pessoa de amor, deixando-a com desejo infinito de buscá-lo e como que sempre se esconde, provocando contínua busca por parte da pessoa.

Ela é dom gratuito de Deus, ao mesmo tempo que busca insaciável da criatura. Essa busca não se realiza sem muita ascese, trabalho de purificação, sofrimento e dor. A contemplação torna-se a oração mais comum dos místicos.

Evidentemente a criatura pode servir-se de recursos psicológicos, de exercícios de mente para dispor-se melhor para o contato com Deus. Mas nunca eles são determinantes na mística. Esta parte da iniciativa livre, generosa e condescendente de Deus.

A mística cristã afasta-se de todo panteísmo: tudo é Deus. Experimenta um "pan-en-teísmo": tudo em Deus e Deus em tudo. O mistério pessoal do Deus trinitário habita em nós, convida-nos ao diálogo, à oração. S. Agostinho formula, de modo maravilhoso, esse movimento de busca de Deus, que não se encontra em perdendo-se fora de si, mas percebendo-o a chamar-nos:

"Tarde vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me longe de vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém chamastes-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o, suspirando por vós. Saboreei-vos, e agora tenho fome e sede de vós. Tocastes-me e ardi no desejo da vossa paz" (Conf. X, 38).

E, noutro lugar, insiste que Deus se revela no mais profundo de nosso ser e não na "compreensão da inteligência", nem no "raciocínio da carne":<br>

"Meu Deus, a vós confesso, a vós que de mim vos compadecestes quando ainda vos não conhecia, quando vos buscava não segundo a compreensão da inteligência, mas segundo o raciocínio da carne. Vós, porém, éreis mais íntimo que o meu próprio íntimo e mais sublime que o ápice de meu ser!" (Conf. III,11).

A experiência do Deus judaico-cristão situa-se na ordem do sentido último da realidade e não do sagrado que atemoriza ou fascina. Javé, única pessoa para o judeu; Deus, Pai de Jesus no Espírito, para o cristão, exprime o Pessoal inominável (Pai, Javé), o Deus feito corpo, história, cosmos, carne (Jesus Cristo), e o Deus alento, entusiasmo, esperança (Espírito Santo).



Conclusão

No primeiro escrito do N.T., a Primeira Carta aos Tessalonicenses, o apóstolo Paulo dá esta diretriz: "Examinai tudo e ficai com o que é bom" (1 Ts 5,21). Gostaria de seguir a mesma diretriz do apóstolo para tentar, nesta conclusão, sugerir algumas atitudes práticas.

Quais atitudes vamos tomar diante das tendências do misticismo neste final de milênio?

Antes de tudo, a "revanche do sagrado" é sinal de que o homem não pode viver sem a espiritualidade. Aliás, a modernidade que colocou as bases do secularismo acabou, paradoxalmente, colocando, através das suas decepções, também as bases desta "volta ao sagrado".

Mais. Estamos vivendo na fase do diálogo inter-religioso. Diálogo não significa nem confusão, nem fechamento no próprio mundo. Neste diálogo, estamos descobrindo as múltiplas faces do divino. Aos poucos, vamos nos despojando dos preconceitos de tantos séculos e nos sentimos peregrinos, como todos os seres humanos. Nossa fé cristã não nos faz melhores nem mais convencidos que ninguém. O diálogo ajuda a superar a intolerância religiosa e o fundamentalismo; ao mesmo tempo, dá-nos luz para uma reflexão serena, que vai além da superficialidade dos que consideram todas as manifestações religiosas como iguais, sem traços, cor ou sabor.

Diálogo não significa renúncia à própria identidade. A cultura ocidental se formou com "Atenas" e com "Jerusalém". Em Atenas aconteceu a passagem do "mithos" ao "logos", quer dizer, o abandono de uma representação fantasiosa do mundo para um conhecimento lógico. O "conceito" de Sócrates, para Weber, é a condição básica da lógica científica.

E em Jerusalém (judaísmo, cristianismo, islamismo) acontece a aceitação de um Deus pessoal e transcendente, criador do mundo, mas distinto do mundo. Daí nasce o valor da "pessoa humana", imagem de Deus, colocada no centro e considerada superior ao mundo material. Hoje o Ocidente, na sua profunda crise, procura luzes no Oriente. É importante que o enriquecimento que pode vir deste outro mundo não aconteça com a renúncia aos valores que criaram a sociedade ocidental.

Gostaria de afirmar que as tendências do misticismo neste final de milênio são um um kairós (= momento favorável) para os cristãos. A sensibilidade pós-moderna perante o sagrado pede de nós, cristãos, o cultivo de nosso patrimônio místico, para oferecer às pessoas um itinerário espiritual

-15-

atento à subjetividade, que integre na busca de Deus os desejos mais profundos do coração e a solidariedade humana na edificação da fraternidade e da paz. Experiência ao mesmo tempo transcendente e histórica, com pés na realidade e olhar no futuro: itinerário cristão que, aliás, não se improvisa...se educa! Então, na espiritualidade cristã, chamamos de "místicos"e "místicas" certas pessoas que viveram o evangelho com intensidade, como caminho de conversão, alegria e testemunho. Assim aconteceu com Agostinho, Francisco e Clara de Assis, João da Cruz e outros. Mesmo nos desertos da vida arriscaram cultivar o jardim. Estas pessoas procuraram a união íntima com Deus Criador, com fé operante e solicitude diante das realidades históricas.

Hoje se fala muito de "holismo". O termo, como vimos, indica a procura da "totalidade", a superação da fragmentação. Por que não descobrir, aqui, o significado e a vivência do termo "católico" (= totalmente inteiro)? A vontade salvífica universal de Deus, a salvação que Cristo conseguiu para todos os homens deve estar aberta a todos os homens, sem limite de tempo, de espaço, de cultura; e deve apresentar a plenitude da revelação de Deus em Cristo; e, acrescentamos, deve salvar o homem em todas as suas dimensões.

Por fim, será que tantas experiências do misticismo não estão contestando uma experiência cristã freqüentemente ritualista, canonista, pouco humana, fechada diante da totalidade que, no fim das contas, tem sempre Deus como sua origem? Por que não valorizar expressões de fé, que, sem renunciar à dogmática cristã, valorizem as sensações e os sentimentos, a espontaneidade, a participação, a afetividade, a alegria, os testemunhos, a religiosidade popular? E tudo isso, juntamente com o compromisso político, sem fugas da realidade e da responsabilidade com a sociedade, com o mundo.



Como disse na introdução, não tive, nesta aula inaugural, nenhuma pretensão de esgotar um assunto tão vasto, que necessita de uma análise bem mais profunda e completa. Quis apenas indicar alguns elementos que possam nos ajudar a entender o que está acontecendo ao nosso redor.

A vocês, agora, o desafio de continuar esta mesma reflexão, enriquecendo-a com seu estudo, com seus escritos, com sua contribuição, com seu renovado e atualizado compromisso cristão.