TENDÊNCIAS
ATUAIS DO MISTICISMO
Prof. Dr. Lino Rampazzo
- Introdução
- A modernidade: um novo tipo
de humanidade, consciente da própria autonomia e de
sua força racional (séc. 16). Esta autonomia
recebe novo impulso pela civilização industrial,
pelo desenvolvimento técnico-científico (séc.
18). A fé vai ser empurrada e a sociedade se secolariza.
- A pós-modernidade:
nasce da decepção frente à ciência
e à técnica, que destruem a natureza (problema
ecológico), desgastam os relacionamentos humanos, não
conseguem resolver problemas básicos (fome), aumentam
a distância entre ricos e pobres, criam armas sempre
mais sofisticadas, etc. A pós-modernidade não
acredita num progresso necessário e infinito.
- A volta do sagrado: O homem
volta-se para seu "interior" e se questiona. Interesse
"esotérico": diferença entre "exoterismo"
(= a exterioridade) e "esoterismo" (= a interioridade).
O homem está confuso
não pela negação da religião,
mas pela "super-oferta" religiosa. A "revanche
do Sagrado" assume a forma de movimento psico-místico-paracientífico-espiritual-terapêutico.
Na volta do sagrado procura-se sanar as feridas da sociedade
moderna. A nova mística abrange pobres e ricos.
- Holística: a tentativa
de compreender a realidade de modo integral.
- Mística: O termo nasce
dentro de um contexto extremamente religioso, ligado aos mistérios,
particularmente os ritos de iniciação.
- mística oriental:
a partir do esforço do homem para atingir o divino;
- mística bíblico-cristã:
a partir da iniciativa gratuita de Deus.
Para a Escola de Alexandria
(Orígenes), o termo "mística" possui
um tríplice significado: cultual, kerygmático
(= de anúncio) e teológico.
Na época moderna, a
mística assume características bem próprias
em oposição à ascética.
Aspecto antropológico:
em cada pessoa existe uma dimensão profunda. Aliás,
toda realidade é também mistério: pessoas,
cosmos, história, natureza, etc.
-2-
- Misticismo: as realidades humanas, sobretudo as espirituais,
correm risco de desvios. E o atual movimento místico
mistura muita fuga, reducionismos, compensações
psicológicas, com autênticos anseios de transcendência.
"Mística"
é, pois, um aspecto necessário e saudável
da experiência humana; e "misticismo" são
os "desvios" da experiência mística.
Cf. o "sim-bólico" (o que une) e o "dia-bólico"
(o que divide).
-
Três tipos de mística:
- mística cósmica:
encaminha-se na linha da redescoberta simbólica do
cosmos como divino, unitário, holístico; aproxima-se
do panteísmo, se é que não o assume de
verdade.
- mística psicológica:
procura desenvolver as potencialidades humanas até
atingir o próprio divino.
- mística dialógica
(judaico-cristã): é o encontro com Deus, o transcendente,
que na sua absoluta alteridade e gratuitade atrai a si a pessoa
para uma experiência profunda de amor.
Conclusão: "Examinai
tudo e ficai com o que é bom" (1 Ts 5,21).
- A "revanche do sagrado"
é sinal de que o homem não pode viver sem a
espiritualidade.
- O diálogo inter-religioso
não significa nem confusão, nem fechamento no
próprio mundo. <br>
- "Holismo": o termo,
etimologicamente, aponta para a procura da "totalidade",
a superação da fragmentação.
As muitas experiências
do misticismo podem ser também uma crítica a
um tipo de experiência cristã freqüentemente
ritualista, pouco humana, insensível ao homem de hoje.
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TENDÊNCIAS ATUAIS DO MISTICISMO
O termo "mística" entrou na onda da era pós-moderna.
Que acontece? Antes estava perdido nos dicionários
de teologia, nas obras de espiritualidade, no recinto dos
monges e monjas contemplativos. Hoje passeia pelas praças
públicas. Será que estamos vivendo os tempos
do Concílio de Nicéia quando se discutia nos
banhos se o Filho era da mesma natureza que o Pai ou simplesmente
semelhante? Em grego se trata de acrescentar ou retirar um
"i" ("omoousios"= da mesma natureza; "homoiousios"=
semelhante).
Programas de TV, artigos de
jornais e de revistas de divulgação, livros
e revistas científicas analisam as diferentes manifestações
deste novo interesse do homem de hoje pelo "sagrado",
pela "mística". No esquema que apresentei
para vocês, indiquei um pouco de bibliografia, a respeito.
O curso de filosofia é
lugar privilegiado onde se questiona, de maneira racional
e sistemática, o "por que" de todas as coisas.
Os responsáveis do CEFIL perceberam, pois, a oportunidade
de refletir sobre este fenômeno e escolheram, para a
aula inaugural do 2º semestre, o tema "tendências
do misticismo no final do milênio".
Não tenho nenhuma pretensão
de esgotar um assunto tão vasto, que necessita de uma
análise muito profunda e bem mais demorada do que o
permitido numa simples aula inaugural. Procuro apenas indicar
alguns elementos que possam nos ajudar a entender o que está
acontecendo ao nosso redor.
Vamos desenvolver os seguintes
itens:
- o que é a modernidade;
- o que é a pós-modernidade;
- a volta do sagrado;
- mística e misticismo;
- os principais tipos de mística na época
atual.
A modernidade
A modernidade é um processo que tem sua origem no século
16, quando começa a emergir um novo tipo de humanidade
consciente de sua própria autonomia e de sua própria
força racional. No momento em que Descartes cunha o
famoso axioma "Cogito, ergo sum", a razão
começa a celebrar o seu triunfo, empurrando a fé
(no caso, a fé cristã!) sempre mais para a periferia.
-2-
Esta autonomia do ser humano
recebe novo impulso a partir do século 18 pela civilização
industrial ou do desenvolvimento técnico-científico.
Este movimento da modernidade
ou modernização desemboca na sociedade que denominamos
"secularizada". O eixo da civilização
deixou de ser a religião, como foi no passado, e se
deslocou para a economia (produção e trabalho)
e a política. A religião passou para o domínio
privado. Para a sociedade moderna, a religião não
conta. As esferas da vida humana tornam-se sempre mais autônomas.
O que conta na vida do ser humano é este mundo, é
a imanência. A transcendência nada mais diz ao
homem da modernidade. É o fenômeno do "secularismo".
A
pós-modernidade
Hoje, porém, a modernidade
entrou em crise. Por isso, fala-se de pós-modernidade.
Essa tendência caracteriza-se pela decepção
frente à ciência e à técnica.
Esta decepção
tem a sua razão de ser ao considerar a situação
cada vez pior do meio ambiente, considerando as guerras que
prosseguem, as experiências atômicas que continuam,
as injustiças e distâncias crescentes entre ricos
e pobres, o fracasso de muitas previsões otimistas...A
pós-modernidade não acredita num progresso necessário
e infinito. Se todos atingissem o mesmo nível elevado
de bem-estar material de que desfrutam os países do
primeiro mundo (e as classes altas e médio-altas do
terceiro mundo), as condições humanas de vida
seriam inviáveis. Tanto os países capitalistas,
quanto os socialistas de corte marxista, basicamente tinham
o mesmo ideal: resolver os problemas da humanidade pelo "ter
mais" e não pelo "ser mais". Este ideal
mostrou-se e mostra-se irrealizável. Em vez do progresso
sonhado, houve regresso: concentração de riquezas
nas mãos de poucos; aumento acelerado da pobreza. É
precisamente a consciência ecológica e o problema
da vida no mundo que torna questionável a viabilidade
do projeto da modernidade, do projeto do progressivo domínio
da natureza mediante sua despótica observação.
A ciência, assim, está perdendo seu valor como
fonte de sentido e deixa, com a técnica, de ser considerada
cada vez mais como princípio válido de orientação
cultural. Esta crise das forças de configuração
dos tempos modernos tem necessariamente seus efeitos sobre
o que há de mais íntimo no homem do Ocidente
e coloca em xeque seu pensar, seu agir e seu sentir. Nasce
uma crescente insegurança quanto ao futuro. Levantam-se
perguntas angustiantes: Como se pode ter hoje uma identidade?
Quem somos? Que devemos ou queremos ser? A resposta é
cada vez mais difícil no mundo cheio de problemas.
A volta do sagrado
Nesta profunda crise, há
uma espécie de retorno a tradições pré-modernas,
em particular pré-iluministas, em que se buscam certezas
mais fortes do que possa oferecer a modernidade crítica.
Elas querem ser uma resposta salvadora a um presente vivido
como crise. Na atual situação cultural, fortalecem-se
as correntes esotérico-religiosas, que há anos
fazem parte dos fenômenos vitais de grande interesse,
como a religiosidade e a espiritualidade.
Vamos, a esta altura, apresentar
mais uma conceituação: exoterismo e esoterismo.
Estas palavras são costumeiramente usadas para expressar
dois aspectos básicos de todas as realidades humanas:
a exterioridade e a interioridade. De fato, não só
as religiões, mas as artes, as experiências de
maravilhamento e paixão, nossa psique e nossos sonhos,
e tudo o mais que seja humano, é marcado por um componente
visível, claro, compreensível, e outro obscuro,
enigmático, muitas vezes indecifrável. Foi assim
que os antigos gregos criaram estes dois termos: exotérico
com ": x", para significar a face exterior dessas
realidades; e esotérico, com "s", indicando
a face interior de nosso ser, nossas produções,
crenças e afetos. Por isso, apesar do uso generalizado
de "esoterismo" como culto de verdades secretas,
o ocultismo, a magia etc., há quem utilize essa palavra
para indicar o aspecto enigmático e escondido de outras
áreas da vida humana: o sentido misterioso de um poema,
de um gesto, de um sonho, de um desenho etc. No caso das religiões,
a dimensão interior é a experiência mística,
fundante, desafiadora, de onde se originam as convicções
profundas de uma crença, seus símbolos principais
e sua espiritualidade. De outro lado, está a vivência
cotidiana da religião, a parte exterior: as normas
práticas, a ética do grupo, os ritos, etc. <br>
Voltamos ao nosso raciocínio.
Há, hoje, um retorno ao sagrado. O ser humano está
confuso e desorientado não pela negação
ou pelo fim da religião (como queriam os "mestres
da suspeita" - Marx, Nietsche, Freud), mas pela superoferta...das
Igrejas, seitas e orientações religiosas.
-4-
Contestou-se a mediação
religiosa das instituições tradicionais. Na
atual sociedade pluralista as instituições não
mais conseguem ter o controle de suas doutrinas, símbolos,
ritos e práticas, ou mesmo de seus adeptos, que, por
vezes, só em parte aceitam o discurso oficial, vivem
uma dupla pertença religiosa. As pessoas atiraram-se
com avidez sobre as correntes esotéricas, a magia,
a astrologia, as técnicas de meditação
e aperfeiçoamento psíquico e caíram nas
mãos de gurus e mestres formados nas mais estranhas
teosofias orientais.
A "revanche do Sagrado"
assume a forma de movimento psico-místico-paracientífico-espiritual-terapêutico.
Essa fila de adjetivos pretende resumir a complexidade e a
ambigüidade de tal surto religioso. Relaciona-se profundamente
com a situação psicológica desse homem
e mulher pós-modernos. Estes aspiram a um campo místico,
que ultrapasse o mundo científico fechado, que entre
pelo espiritual e lhes seja uma verdadeira cura interior.
O sagrado vem sanar, em nível individual, as carências,
necessidades e feridas que a sociedade altamente tecnificada
tem produzido: o horror de duas guerras mundiais neste século,
os artefatos bélicos atômicos capazes de destruir
várias vezes toda a vida no planeta, a péssima
distribuição da renda a nível mundial,
com a espantosa diferença entre o assim chamado "primeiro
mundo" e o "terceiro mundo". E hoje, seja no
"primeiro", como no "terceiro" mundo,
a "globalização da economia" traz
consigo o espectro do desemprego. Já não se
pode confiar na razão instrumental, técnica,
científica, pois ela continua devastando a natureza,
destruindo a cada dia inúmeras espécies de vida,
poluindo as águas, os ares, o solo e o subsolo, desgastando
os relacionamentos humanos. Enfim, impõem-se o medo,
a angústia, a falta de sentido, subprodutos do desenvolvimento.
Entregue à frieza da técnica, à carência
de sentido, o homem reage buscando o oposto: a harmonia, a
emoção, a intuição, a razão
fruitiva e comunicativa. Rasga-se então enorme espaço
para o surto religioso de todo tipo: esoterismos, promessas
de curas, práticas de ocultismo mágico, passagens
pelo fogo, saunas hindus, a fé na virada do tempo para
uma Nova Era do homem aquariano.
A onda mística destes
últimos anos reflete forte dose compensatória
da carência existencial. O olhar desvia-se do sagrado
como valor absoluto em si e, por isso, normativo, para concentrar-se
no indivíduo necessitante de conforto. O sagrado vem
consolar, resolver os problema imediatos.
-5-
O sofrimento e os problemas
atingem as áreas materiais e espirituais. Os pobres
vêem-se assolados por terríveis ameaças
à vida material pela fome, pobreza, falta dos bens
elementares, além de terem a alma atribulada. Necessitam
do sagrado para os dois mundos.
Os ricos, bem defendidos no
campo material, não escapam de se tornarem vítimas
do enjôo existencial. Também precisam bater à
porta do sagrado. Daí que essa onda não discrimina
classes. <br>
A esse respeito, uma recente
pesquisa do Santuário Nacional de Aparecida revela
que: <br>
- há uma significativa
presença da classe médio-alta entre os romeiros;
<br>
- menos de um terço
dos romeiros comunga; e um número ainda bem menor se
confessa (250 mil confissões anuais por mais de 7 milhões
de romeiros). <br><br>
Talvez estes dados mostrem
que o objetivo imediato da romaria não é a conversão
radical a Cristo e à sua Igreja, mas a necessidade
de um consolo espiritual-individual.
Vamos para mais uma conceituação,
que é importante para entender o fenômeno atual
do misticismo. Um termo hoje muito usado é "holística".
Do grego "hólon" (= totalidade, globalidade).
Trata-se da tentativa de compreender a realidade de modo integral.
Com o pensamento moderno e
autonomia da razão, o conhecimento humano foi-se especializando
cada vez mais. As ciências se organizaram como um conjunto
de especialidades bem definidas, com instrumental técnico
e métodos rigorosos de investigação.
Todo cientista competente é um especialista: alguém
que sabe tudo sobre um pequeno fragmento. A alta especialização
trouxe-nos grande conhecimento e poder de instrumentalização
da natureza. Mas provocou uma fragmentação na
visão de mundo e humanidade.
Além disso, no substrato
de nossa cultura ocidental encontramos outras divisões:
entre corpo e alma, terra e céu, vida espiritual e
vida prática, razão e emoção,
discurso e símbolo.
Seria ingenuidade negar essas
"dualidades". elas constituem as tramas da nossa
existência. Contudo, é um equivoco encará-las
como divisões estanques. Dualidade não significa
dualismo radical ou oposição. Hoje existem reações
a esses dualismos, em prol de uma visão mais integral
e unitária do ser humano, da vida e do cosmos. Aí
entra a "holística". As ciências já
formulam os inícios de uma antropologia holística,
uma medicina holística., uma psicologia
-6-
holística, etc. O pensamento
holístico está na fase de ensaio: é uma
tarefa ainda embrionária, mas que certamente crescerá.
De qualquer forma, o ser humano, hoje, vem sendo estimulado
a superar as dicotomias que o limitam. Invade-lhe o desejo
de ultrapassar as fronteiras da física e da ciência,
do corpo, do mundo cósmico, do aqui, do saber cartesiano
para paragens místicas, espirituais. Reina o mundo
do "para" (= ao lado de): parapsicológico,
paranormal, paracientífico. De novo, está aberto
o espaço para a onda mística com toda sua ambigüidade
e complexidade.
Mística
e Misticismo
Até agora falamos da modernidade, da pós-modernidade,
da revanche do Sagrado e da "onde mística".
Mas o que significam as palavras "mística"
e "misticismo"?
A palavra "mística"
possui longa história no cristianismo e fora dele.
A etimologia faz derivar o termo do adjetivo grego "misticós",
relacionado com os verbos "muo" (fechar os olhos
e a boca para penetrar num mistério sem divulgá-lo)
e "mueo" (iniciar-se nos mistérios"):
iniciar, instruir alguém nos mistérios; e mais
comumente na voz passiva: ser iniciado, instruído nos
mistérios. Portanto, mística nasce de um contexto
extremamente religioso, ligado aos mistérios, particularmente
os ritos de iniciação. A pessoa é levada
a experimentar, através de celebrações,
cânticos, danças, dramatizações
e realização de gestos rituais, uma revelação
ou uma iluminação conservada por um grupo determinado
e fechado. Importa enfatizar o fato de que "mistério"
está ligado a essa vivência/experiência
globalizante.
Não se trata de ouvir
uma catequese sobre uma doutrina de difícil acesso
ou de receber lições sobre certa visão
secreta das coisas. mas se trata de fazer uma experiência
religiosa comunitária. A esse processo experimental
chamou-se mistério, para dizer que é comunicado
a um grupo que se dispõe a isso e não simplesmente
a qualquer assistente curioso.
Conserva, portanto, o significado
principal de exprimir toda experiência mais íntima
de uma realidade transcendente, sobretudo religiosa. Ampliou-se-lhe
também o sentido para a vivência de uma causa,
de uma vocação, de um ideologia: quando se é
tomado, absorvido por ela.
No campo religioso, há
um divisor de águas muito importante. Na tradição
das religiões orientais, mística associa-se
mais a uma comunhão com o mundo divino a que o ser
humano aspira através de esforço, exercícios,
-7-
técnicas. Nesse sentido,
o mestre, o guru afigura-se fundamental para introduzir o
noviço nesse mundo dos mistérios do divino.
Na tradição bíblico-cristã,
mística entende-se antes a partir da iniciativa gratuita
de Deus de atrair para si a criatura, que, num segundo momento,
se deixa arrastar pelo ímpeto divino com sua aceitação.
Jeremias traduz graficamente tal experiência comparando-a
com a sedução: "Seduziste-me, e deixei-me
seduzir, agarraste-me e me submeteste!" (Jr 20,7).
A influência da Escola
de Alexandria (Orígenes) imprimiu ao termo um tríplice
significado: cultual, kerygmático (= de anúncio)
e teológico. "Místicos" são
chamados os objetos de culto (p ex. o cálice) e os
ritos litúrgicos, enquanto simbolizam um mistério
divino, o mistério de Cristo e da redenção.
É bom lembrar, a esse respeito, que a palavra "sacramento"
é a tradução do termo latino "sacramentum",
que, por sua vez, traduz o termo grego "mysterion".
Quanto ao significado kerigmático,
"místico" é o sentido íntimo,
espiritual da Sagrada Escritura. Mas "mística"
é, sobretudo, a misteriosa e real comunhão do
cristão com Cristo (o Logos, donde "mística
do Logos"), que se fundamenta no batismo; comunhão
que se experimenta na fé (gnose) e no amor. "Mística"
no sentido teológico é, portanto, a gnose carismática,
plena de amor, do perfeito homem espiritual. <br>
Na sistematização
da teologia, já na época moderna, a mística
assume características bem próprias em oposição
à ascética. Essa ruptura artificial e didática
contaminou a semântica da palavra. Fê-la transitar
por caminhos cada vez mais extraordinários, fazendo-a
um "horto fechado", inacessível ao comum
dos mortais e exclusivo de pessoas eleitas , dotadas de dons
extraordinários de visões, aparições,
estigmas, revelações. <br>
A mística é dom
de Deus, mas encontra no ser humano pontos de engate, criados
pelo próprio Deus. Revela que em cada pessoa existe
uma dimensão profunda.
O ser humano é mistério
também para si. Mistério enquanto realidade
absolutamente inatingível em sua totalidade. Limite
para a própria inteligência. Durante toda a vida
estamos juntos a nós mesmos e nos surpreendemos. Não
dá conta dessa realidade o simples recurso ao inconsciente.
O mistério vai mais longe. Em termos antropológicos
implica, da parte das pessoas, desejo irreprimível
de imergirem-se no seu interior à busca da sua própria
realidade. Lá depara-se com um núcleo que irradia
para todos os lados. Para trás, captando o histórico-existencial.
Para o lado, tecendo relações novas e criativas
-8-
com as pessoas e com o cosmos.
Para cima, suspirando por encontros maiores com o transcendente.
Para frente, lançando-se em projetos novos e prenhes
de esperança. Para baixo, descobrindo as camadas mais
profundas do eu.
Nesse sentido, entendem-se
as pretensões da psicologia de profundidade, transpessoal,
que não se contenta com o espaço atual já
possuído pelo nosso Eu consciente, mas quer avançar
sempre mais em todas as direções, alargando
a consciência.
A mística permite que
se perceba, para além do mistério que cada um
é para si, o dado de que toda realidade é também
mistério: pessoas, cosmos, história, natureza,
etc.
Educa novo tipo de olhar. Deixa-se
de lado a visão reducionista das ciências, sobretudo
empíricas, experimentais e objetivantes para alargá-la
para o olhar intuitivo, espiritual, contemplativo, admirador.
<br>
Esta dimensão antropológico-existencial
revela uma face religiosa implícita. Mistério,
como a etimologia nos ensina, situa-se no campo religioso
por excelência. Mistério reflete a inabitação
do divino em todas as coisas. É a presença da
transcendência na imanência. De parte nossa, supõe
nova sensibilidade.
Mas
as realidades humanas, sobretudo as espirituais, correm risco
de desvios. L. Feuerbach, se na sua crítica radical
exagerou, ao identificar a realidade de Deus com projeções
da subjetividade humana, acertou em alertar-nos para a periculosidade
do espaço religioso. Se Marx simplificou o fenômeno
religioso em seu alcance social, ao reduzi-lo a "ópio
do povo", apontou, sem dúvida, para desvios muito
reais. Se Freud confinou Deus aos limites de nossa infantilidade,
tocou em chagas vivas de muitos fiéis.
Com efeito, o atual movimento
místico mistura muita fuga, reducionismos, compensações
psicológicas, com autênticos anseios de transcendência.
Há, ao mesmo tempo, tanto uma capitulação
ao reino do mercado consumista da fé quanto uma crítica
teologal ao império absoluto da técnica.
Essa ambigüidade acentua-se
cada vez mais sobretudo por obra e graça da mídia.
Esta consegue transformar em mercadoria as realidades mais
sagradas. Apodera-se de qualquer realidade religiosa e fá-la
objeto de consumo, arrancando-lhe o valor intrínseco,
objetivo, transcendente, normativo.
-9-
Poderíamos dizer, a
essa altura, que "mística" é um aspecto
necessário e saudável da experiência humana;
e "misticismo" são os "desvios"
da experiência mística, que podem, por exemplo,
absolutizar um elemento da sua experiência religiosa.
A "mística" integra, envolve a pessoa como
um todo; enquanto que o "misticismo" desintegra
a pessoa; é um exagero, um desequilíbrio do
caminho rumo à experiência mística.
Neste sentido, é interessante
a reflexão que encontramos no recente livro de Leonardo
Boff "O Despertar da águia : o dia-bólico
e o sim-bólico na construção da realidade".
Permito-me aplicar o seu raciocínio à distinção
entre "mística"e "misticismo".
"Sím-bolo/sim-bólico
provém de symbállein. Literalmente significa
: lançar (bállein) junto (syn). O sentido é:
lançar as coisas de tal forma que elas permaneçam
juntas. Num processo complexo significa re-unir as realidades,
congregá-las a partir de diferentes pontos e fazer
convergir forças num único feixe.
Originalmente existia por detrás
da palavra e do conceito símbolo uma experiência
singular e curiosa: dois amigos, por conjunturas aleatórias
da vida, têm que separar-se. A separação
é sempre dolorosa. Implica sentimento de perda. Deixa
muita saudade para trás. Assim os dois amigos tomavam
um pedaço de telha e cuidadosamente o partiam em dois,
de tal modo que, juntados, se encaixavam perfeitamente. Cada
um carregava consigo o seu pedaço. Se um dia voltassem
a encontrar-se, mostrariam os pedaços que deveriam
encaixar-se exatamente. Caso se encaixassem, simbolizava que
a amizade não se desgastou nem se perdeu. Era o símbolo
(eis a palavra), vale dizer, o sinal de que, apesar da distância,
cada um sempre conservou a memória bem-aventurada do
outro, presente no caco bem cuidado da telha.
Deste significado originário
de sím-bolo, derivou-se naturalmente o outro: sím-bolo
como sinal de distinção. Cada país, cada
cidade, e hoje cada produto, têm sua marca registrada,
seu logotipo e símbolo. Até na religião
penetrou essa significação. Para a teologia
cristã, por exemplo, cunhou-se a expressão técnica
símbolo da fé para expressar o credo e os dogmas
fundamentais. Eles são os sinais de distinção,
a marca registrada da fé cristã, diferente de
outras formas de fé.
E
o dia-bólico?
Dia-bólico provém
de dia-bállein. Literalmente significa : lançar
as coisas para longe, de forma desagregada e sem direção;
jogar fora de qualquer
-10-
jeito. Dia-bólico, como
se vê, é oposto ao sim-bólico. É
tudo o que desconcerta, desune, separa e opõe".
(p. 11-13)
Daí, poderíamos
afirmar que a "experiência mística"
se realiza no "sim-bólico"; e o "misticismo"
no "dia-bólico". Dia-bólico é
confundir uma parte com o todo, é a absolutização
de uma forma de expressão religiosa; é a redução
da experiência humana só a razão, ou a
sentimento, a economia, a desejo, a instinto, à imanência;
e também à transcendência.
O "sim-bólico",
com toda certeza, na sua totalidade, é mais um ponto
de chegada do que de partida. A falta de "perfeição"
presente no homem e no mundo, indica a presença do
"dia-bólico"; e a procura da mesma é
a tensão para o "sim-bólico".
Aplicando às mais diferentes
experiências do sagrado, poderíamos afirmar que
a "mística" pertence mais ao "sim-bólico"
e o "misticismo" ao "dia-bólico".
É preciso, porém,
reconhecer que várias vezes o termo "misticismo"
não é utilizado neste sentido negativo, mas
simplesmente para mostrar que está sendo ressaltado
o elemento espiritual. Por exemplo, o teólogo de Chicago,
Wayne Teasdale, num artigo publicado na Revista "Conclilium",
citado nesta bibliografia, dá o mesmo significado ao
termo "mística" e "misticismo".
Assim, ele escreve: "É difícil...escrever
sobre experiência mística e todo o processo interior
de contato com a Realidade Divina ou Realidade Última.
Ela está completamente cercada de mistério.
Esta dificuldade é agravada quando tentamos falar sobre
misticismo do ponto de vista teológico" (p.109).
"Misticismo é o despertar para a consciência
transcendental e o cultivo da mesma. É consciência
unitiva. Todas as formas de sabedoria mística são
unitivas, isto é, não-duais. Contribuem para
compreendermos mais profundamente o mistério. Esse
é um importante ponto de convergência entre as
próprias religiões" (p.111). Logo em seguida,
ela fala de uma "interespiritualidade" na qual são
compartilhados os tesouros espirituais, estéticos,
morais e psicológicos contidos nas diferentes tradições
de espiritualidade das religiões mundiais" (p.
112). Mas este é já um outro tema.
No momento atual, assistimos
ao surgimento de três tipos principais de mística-misticismo.
Um voltado para a sacralidade do cosmos, outro, para o interior
religioso das pessoas e outro aberto ao diálogo com
um transcendente pessoal. Neste sentido, falamos de mística
cósmica, psicológica e dialógica.
-11-
Mística
cósmica
A mística cósmica
encaminha-se na linha da redescoberta simbólica do
cosmos como divino, unitário, holístico. Aproxima-se
do panteísmo, se é que não o assume de
verdade. Desenvolve uma consciência integral cósmica.
Numa perspectiva monista, foge-se da angústia que vem
da fragmentação e da complexidade.
Associa-se ao movimento da
ecologia profunda. Esta não se contenta com simples
atitude superficial de preservação do equilíbrio
do planeta. Promove nova forma de consciência crítica
ao uso instrumental e tecnológico da natureza. Implica
conversão mental ao estabelecer relação
finalística nos confrontos com a natureza em atitude
mística.
No fundo, propugna-se novo
paradigma: todas as formas de vida têm igual valor,
supera-se a atitude antropocêntrica, desfrutadora. Toma-se
consciência de que entre cada um e o cosmos existem
laços profundos, correspondências secretas, afinidades
vitais que devem ser restabelecidas, superando o dualismo
interno (corpo e mente) e externo (cada um e natureza). O
cosmos é fruto e manifestação de uma
energia em contínua processão. Energia espiritual
que dá origem, nas suas transformações,
à matéria e ao homem. A natureza, sua suprema
manifestação, é o organismo vivo, totalidade
orgânica que manifesta a potência deste élan
(surto) vital, com suas leis, formas, fins.
Essa vida confunde-se, em muitos
casos, com o divino. No homem existe esta energia, potencial
a ser ativado e realizado. Cintila esquecida. Procura-se uma
nova gnose, conhecimento para descobri-la, reavivá-la.
Por ela, a pessoa religa-se à energia-fundamento do
cosmos. Aprofunda-se uma percepção da interligação
de todas as coisas. Valorizam-se, nesta mística, símbolos,
tais como mãe, natureza, terra, água, astros,
cores, sons.
Assim esta mística se
abre à mística psicológica.
Mística
psicológica
No seu cerne está a
auto-realização do Eu (A. Maslow) no mais profundo
do si, em verdadeiro autocentrismo psicológico.
Reage-se tanto ao positivismo
behaviorista de categorias mecânicas, newtonianas, como
à psicanálise com suas concepções
estáticas e absolutas,
-12-
com seu determinismo rigoroso
que não capta uma personalidade sadia no seu desenvolvimento
para algo de mais alto, nobre, humanamente gratificante. Para
isso, é necessário
"escutar-se dentro, no próprio si, em cada momento
da vida". Este desejo de ouvir-se dentro permite encontrar
a filosofia e mística oriental não sem relação
com pressupostos junguianos. Daí nasce novo horizonte
que vai além da pessoa, em dimensão transpessoal.
O
crescimento psicológico se baseia sobre o crescimento
espiritual onde aparecem dominantes temas ligados aos valores
últimos, à consciência unitiva, à
maravilha, ao significado último, à transformação
de si, ao êxtase, à tomada de consciência
cósmica. Transparece aí com maior clareza a
dimensão religiosa mística que considera o si
como o próprio divino que está em nós.
É o divino em nós que deve ser posto em ato,
de vir à consciência para conduzir o homem à
plena realização de si mesmo.
Para tal tomada de consciência
se usam técnicas variadas: zen (deseja levar o fiel
ao mais alto grau de concentração através
da meditação, da disciplina mental), drogas,
hipnose, dança, consciência específica
e momentânea do próprio corpo, hatha yoga tântrico
(para entrar em sintonia com o cosmos, o que significa um
êxtase na direção do Buda-Grande -Sol
presente no universo), yantra (diagramas para visualização),
mantra (expressões rítmicas sonoras: refrões
ou sílabas, cantadas com uma cadência permanente),
mudra (gestos e posições do corpo através
dos quais circula a energia). Numa palavra, o desejo último
é desenvolver as potencialidades humanas até
atingir o próprio divino.
Mística
dialógica judaico-cristã
Situa-se noutro horizonte.
Antes de tudo, é iniciativa de Deus. E Deus é
pessoal e, por sinal, tripessoal, e não um vago divino,
uma energia primordial. Um fluido positivo cósmico.
Define-se a partir de uma realidade
transcendente experimentada de maneira que supera a pura racionalidade
imanente.
As
testemunhas qualificadas para falarem dessa experiência
são os místicos. Descrevem-na como um encontro
com Deus, o transcendente, que na
sua absoluta alteridade e gratuidade
atrai a si a pessoa para uma experiência profunda de
amor. Amor que sacia, mas que desperta ainda mais desejo.
Amor de encontro, mas de busca.
Escreve S. João da Cruz,
no início de seu cântico espiritual:
-13-
"Onde te escondeste, Amado,
e me deixaste com gemido? Como o cervo fugiste, tendo-me ferido;
saí atrás de ti clamando, e já tinhas
ido!"
Estes poucos versos refletem
o cerne da experiência mística: Deus "fere"a
pessoa de amor, deixando-a com desejo infinito de buscá-lo
e como que sempre se esconde, provocando contínua busca
por parte da pessoa.
Ela é dom gratuito de
Deus, ao mesmo tempo que busca insaciável da criatura.
Essa busca não se realiza sem muita ascese, trabalho
de purificação, sofrimento e dor. A contemplação
torna-se a oração mais comum dos místicos.
Evidentemente a criatura pode
servir-se de recursos psicológicos, de exercícios
de mente para dispor-se melhor para o contato com Deus. Mas
nunca eles são determinantes na mística. Esta
parte da iniciativa livre, generosa e condescendente de Deus.
A mística cristã
afasta-se de todo panteísmo: tudo é Deus. Experimenta
um "pan-en-teísmo": tudo em Deus e Deus em
tudo. O mistério pessoal do Deus trinitário
habita em nós, convida-nos ao diálogo, à
oração. S. Agostinho formula, de modo maravilhoso,
esse movimento de busca de Deus, que não se encontra
em perdendo-se fora de si, mas percebendo-o a chamar-nos:
"Tarde vos amei, ó
Beleza tão antiga e tão nova, tarde vos amei!
Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora
a procurar-vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras
que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava
convosco! Retinha-me longe de vós aquilo que não
existiria se não existisse em Vós. Porém
chamastes-me com uma voz tão forte que rompestes a
minha surdez! Brilhastes, cintilastes e logo afugentastes
a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o, suspirando
por vós. Saboreei-vos, e agora tenho fome e sede de
vós. Tocastes-me e ardi no desejo da vossa paz"
(Conf. X, 38).
E, noutro lugar, insiste que
Deus se revela no mais profundo de nosso ser e não
na "compreensão da inteligência", nem
no "raciocínio da carne":<br>
"Meu Deus, a vós
confesso, a vós que de mim vos compadecestes quando
ainda vos não conhecia, quando vos buscava não
segundo a compreensão da inteligência, mas segundo
o raciocínio da carne. Vós, porém, éreis
mais íntimo que o meu próprio íntimo
e mais sublime que o ápice de meu ser!" (Conf.
III,11).
A experiência do Deus
judaico-cristão situa-se na ordem do sentido último
da realidade e não do sagrado que atemoriza ou fascina.
Javé, única pessoa para o judeu; Deus, Pai de
Jesus no Espírito, para o cristão, exprime o
Pessoal inominável (Pai, Javé), o Deus feito
corpo, história, cosmos, carne (Jesus Cristo), e o
Deus alento, entusiasmo, esperança (Espírito
Santo).
Conclusão
No primeiro escrito do N.T.,
a Primeira Carta aos Tessalonicenses, o apóstolo Paulo
dá esta diretriz: "Examinai tudo e ficai com o
que é bom" (1 Ts 5,21). Gostaria de seguir a mesma
diretriz do apóstolo para tentar, nesta conclusão,
sugerir algumas atitudes práticas.
Quais atitudes vamos tomar
diante das tendências do misticismo neste final de milênio?
Antes de tudo, a "revanche
do sagrado" é sinal de que o homem não
pode viver sem a espiritualidade. Aliás, a modernidade
que colocou as bases do secularismo acabou, paradoxalmente,
colocando, através das suas decepções,
também as bases desta "volta ao sagrado".
Mais. Estamos vivendo na fase
do diálogo inter-religioso. Diálogo não
significa nem confusão, nem fechamento no próprio
mundo. Neste diálogo, estamos descobrindo as múltiplas
faces do divino. Aos poucos, vamos nos despojando dos preconceitos
de tantos séculos e nos sentimos peregrinos, como todos
os seres humanos. Nossa fé cristã não
nos faz melhores nem mais convencidos que ninguém.
O diálogo ajuda a superar a intolerância religiosa
e o fundamentalismo; ao mesmo tempo, dá-nos luz para
uma reflexão serena, que vai além da superficialidade
dos que consideram todas as manifestações religiosas
como iguais, sem traços, cor ou sabor.
Diálogo não significa
renúncia à própria identidade. A cultura
ocidental se formou com "Atenas" e com "Jerusalém".
Em Atenas aconteceu a passagem do "mithos" ao "logos",
quer dizer, o abandono de uma representação
fantasiosa do mundo para um conhecimento lógico. O
"conceito" de Sócrates, para Weber, é
a condição básica da lógica científica.
E em Jerusalém (judaísmo,
cristianismo, islamismo) acontece a aceitação
de um Deus pessoal e transcendente, criador do mundo, mas
distinto do mundo. Daí nasce o valor da "pessoa
humana", imagem de Deus, colocada no centro e considerada
superior ao mundo material. Hoje o Ocidente, na sua profunda
crise, procura luzes no Oriente. É importante que o
enriquecimento que pode vir deste outro mundo não aconteça
com a renúncia aos valores que criaram a sociedade
ocidental.
Gostaria de afirmar que as
tendências do misticismo neste final de milênio
são um um kairós (= momento favorável)
para os cristãos. A sensibilidade pós-moderna
perante o sagrado pede de nós, cristãos, o cultivo
de nosso patrimônio místico, para oferecer às
pessoas um itinerário espiritual
-15-
atento à subjetividade,
que integre na busca de Deus os desejos mais profundos do
coração e a solidariedade humana na edificação
da fraternidade e da paz. Experiência ao mesmo tempo
transcendente e histórica, com pés na realidade
e olhar no futuro: itinerário cristão que, aliás,
não se improvisa...se educa! Então, na espiritualidade
cristã, chamamos de "místicos"e "místicas"
certas pessoas que viveram o evangelho com intensidade, como
caminho de conversão, alegria e testemunho. Assim aconteceu
com Agostinho, Francisco e Clara de Assis, João da
Cruz e outros. Mesmo nos desertos da vida arriscaram cultivar
o jardim. Estas pessoas procuraram a união íntima
com Deus Criador, com fé operante e solicitude diante
das realidades históricas.
Hoje se fala muito de "holismo".
O termo, como vimos, indica a procura da "totalidade",
a superação da fragmentação. Por
que não descobrir, aqui, o significado e a vivência
do termo "católico" (= totalmente inteiro)?
A vontade salvífica universal de Deus, a salvação
que Cristo conseguiu para todos os homens deve estar aberta
a todos os homens, sem limite de tempo, de espaço,
de cultura; e deve apresentar a plenitude da revelação
de Deus em Cristo; e, acrescentamos, deve salvar o homem em
todas as suas dimensões.
Por fim, será que tantas
experiências do misticismo não estão contestando
uma experiência cristã freqüentemente ritualista,
canonista, pouco humana, fechada diante da totalidade que,
no fim das contas, tem sempre Deus como sua origem? Por que
não valorizar expressões de fé, que,
sem renunciar à dogmática cristã, valorizem
as sensações e os sentimentos, a espontaneidade,
a participação, a afetividade, a alegria, os
testemunhos, a religiosidade popular? E tudo isso, juntamente
com o compromisso político, sem fugas da realidade
e da responsabilidade com a sociedade, com o mundo.
Como disse na introdução,
não tive, nesta aula inaugural, nenhuma pretensão
de esgotar um assunto tão vasto, que necessita de uma
análise bem mais profunda e completa. Quis apenas indicar
alguns elementos que possam nos ajudar a entender o que está
acontecendo ao nosso redor.
A vocês, agora, o desafio
de continuar esta mesma reflexão, enriquecendo-a com
seu estudo, com seus escritos, com sua contribuição,
com seu renovado e atualizado compromisso cristão.

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